Efetividade da atuação do Ministério Público de Contas para além da sua função de custos legis

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Este artigo foi publicado na Revista Em Foco – MPC/MG – 2ª edição – julho/dezembro 2021

 

Efetividade da atuação do Ministério Público de Contas para além da sua função de custos legis

Elke Andrade Soares de Moura

Não se deve ir atrás de objetivos fáceis, é preciso buscar o que só pode ser alcançado por meio dos maiores esforços.

Albert Einstein

 

Servir ao público, múnus de todo servidor público, mormente daqueles que assumem maiores responsabilidades dentre os diversos papéis destinados ao Estado, compreende a necessidade de que se empreenda o máximo esforço para se fazer melhor do que se faria a si mesmo, na medida em que o produto desse esforço reverbera em prol de toda a coletividade. As maiores conquistas em termos democráticos não dependem apenas de reformas estruturais no âmbito da administração pública, mas residem, sobretudo, na qualificação dos seus agentes, no modo como se comportam e em como se relacionam Estado e sociedade. É precisamente dessa premissa que se pretende desenvolver a reflexão acerca da efetividade da atuação do Ministério Público de Contas – MPC no cumprimento das atribuições que lhe foram constitucional e legalmente reservadas.

Como se sabe, a razão para a gênese constitucional de um Ministério Público especializado junto ao Tribunal de Contas (o Parquet de Contas) está precisamente na  necessidade de se tutelar o processo desenvolvido perante aquela Corte administrativa de controle externo, vez que, consoante regramento estatuído na Constituição da República, lhe foram confiadas, pelo art. 71, competências de julgamento de contas de administradores e demais responsáveis por dinheiros, bens e valores públicos da administração direta e indireta, incluídas as fundações e sociedades instituídas e mantidas pelo Poder Público, e as contas daqueles que derem causa a perda, extravio ou outra irregularidade de que resulte prejuízo ao erário público; para apreciar a legalidade de atos de admissão de pessoal, aposentadorias, reformas e pensões; para aplicar aos responsáveis, em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, dentre outras tantas competências fiscalizatórias voltadas ao resguardo do regular manejo das finanças públicas. Destarte, no âmbito da jurisdição administrativa a cargo do Tribunal de Contas, entendeu o constituinte como indispensável a existência de um órgão ministerial incumbido de zelar pela fiel observância do ordenamento jurídico, assim como dos princípios e regras estabelecidos para reger a  marcha do devido processo legal, função essa comumente conhecida como custos legis ou custos iures numa acepção mais ampla e adequada a abarcar toda a plêiade de atribuições por ela abrangida.

Não é por outra razão que o Ministério Público de Contas precisa se manifestar em todos os processos que tramitam perante o Tribunal de Contas (salvo raríssimas e expressas exceções), visto que é sua participação como custos legis (guarda da lei e fiscal de sua execução) que legitima o devido processo legal administrativo.

Comprometido que está com a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, consoante dicção do art. 127 da Constituição da República, este órgão ministerial especializado cumpre, em sua função de custos legis, a missão de proteger os interesses da sociedade, tanto no que concerne à escorreita aplicação dos recursos públicos e à responsabilidade na gestão fiscal, quanto à regularidade do procedimento em meio ao qual as matérias fiscalizáveis pelo Tribunal de Contas são examinadas. Indubitável, pois, a relevância da função de custos legis exercida pelo Ministério Público de Contas.

Entretanto, apesar da sua essencialidade (pois que, dada a importância dessa função, sua ausência gera nulidade processual), não reside na função de custos legis exercida perante a Corte de Contas, nos dias de hoje, a maior efetividade da atuação do Parquet especializado. Isso porque, de um lado, apesar do destacado papel do Tribunal de Contas no Estado Democrático de Direito, os processos que perante ele têm curso ainda levam longo período de tempo até o seu desfecho, o que resulta, muitas vezes, a impossibilidade de se sanar o vício encontrado e promover a responsabilização dos agentes pela prática de irregularidades, por força da ocorrência da decadência ou da prescrição das pretensões punitiva e ressarcitória. Especialmente após a fixação do Tema 899 pelo Supremo Tribunal Federal – STF (RE 636886, Rel. Alexandre de Moraes, julgado em 20/04/2020. Repercussão Geral), em que ficou assentada a possibilidade de prescrição da pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão do Tribunal de Contas, alterando entendimento até então prevalecente no sentido da imprescritibilidade do dano. De outro lado, porquanto incumbe ao Ministério Público de Contas, por dever de ofício, apurar a existência de irregularidades no âmbito das fiscalizações financeira, orçamentária, contábil, patrimonial e operacional das entidades federativas, incluindo as administrações direta e indireta, quanto aos aspectos de legalidade, legitimidade e economicidade, aplicação de subvenções e renúncia de receitas. E é precisamente no exercício dessa atribuição que reside o maior campo de efetividade do trabalho fiscalizatório desenvolvido pelo Ministério Público de Contas.

Em outras palavras, a par da contribuição que presta ao Tribunal de Contas na condição de custos legis, emitindo parecer nos processos que tramitam naquela Corte e legitimando os seus feitos, ao fiscalizar todo o seu desenvolvimento, compete (competência tomada como poder-dever ou dever-poder, como preferem alguns) ao Parquet especial resguardar os direitos da sociedade, combatendo a corrupção e zelando pela execução adequada de políticas públicas concretizadoras de direitos fundamentais. Em cumprimento a esse amplo e complexo desiderato, em apoio ao Tribunal de Contas e às demais instâncias de controle e combate ao mau uso dos recursos públicos, é que o Ministério Público de Contas tem dedicado seus esforços em defesa dos interesses da coletividade.

Entramos agora, então, na órbita do poder investigatório do Parquet especial, atividade finalística operada de forma autônoma e independente da Corte de Contas. À vista da sua inegável essência ministerial (tanto que, topograficamente, optou o constituinte por tratar deste ramo especializado dentro da seção destinada ao Ministério Público, e não em qualquer outra, a exemplo daquela em que o Tribunal de Contas foi delineado), está o Ministério Público de Contas instrumentalizado para o exercício do seu mister, devendo deflagrar os procedimentos investigatórios adequados, dentro da sua órbita material de competências, para apuração de irregularidades ou ilegalidades de que tenha ciência. Tais procedimentos são regulamentados no âmbito da própria instituição, com supedâneo na legislação do Ministério Público que lhe serve de parâmetro de sujeição, notadamente quanto a prerrogativas para o exercício de suas atribuições (Lei Complementar estadual nº 34, de 12 de setembro de 1994, no caso do Ministério Público de Contas do Estado de Minas Gerais – MPC/MG).

No âmbito do MPC/MG, a matéria está regulamentada pela Resolução nº 14, de 18 de dezembro de 2019, a qual prevê, em seu art. 4º, parágrafos 1º e 2º, os procedimentos destinados à apuração, de ofício, de fato de que tome ciência por qualquer meio, ou que seja levado a seu conhecimento como notícia de irregularidade (denúncias oportunizadas a qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato e que podem ser feitas, até mesmo, de forma anônima), quais sejam: (I) procedimento preparatório, destinado à obtenção de elementos para identificação do denunciado ou do objeto, visando complementar a documentação ou informação recebida, antes da instauração do inquérito civil ou da adoção de outras providências cabíveis; e (II) inquérito civil, para apuração de fato que possa autorizar a atuação do Ministério Público de Contas na tutela dos direitos e interesses concernentes à fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial da administração pública estadual e municipal, servindo como preparação para o exercício de suas atribuições perante o Tribunal de Contas.

O tempo de conclusão desses procedimentos, que se desenvolvem apenas no âmbito do gabinete do procurador que determinou a sua instauração, aliado às diversas possibilidades de saneamento consensual dos vícios encontrados, mediante atendimento pelos jurisdicionados de diligências ou recomendações notificatórias expedidas pelo membro do Parquet de Contas, ou, ainda, da celebração de termos de ajustamento de conduta de gestão, permite maior efetividade à sua atuação. Isso porque referidos procedimentos possuem prazo diminuto para sua conclusão (90 dias no caso de procedimento preparatório, prorrogável uma única vez por igual prazo, e 1 ano no caso de inquérito civil, prorrogável pelo mesmo prazo quantas vezes forem necessárias, a depender da complexidade do caso, mediante decisão fundamentada do procurador que o preside). Desse modo, o procurador consegue levar a cabo, de forma célere, seu trabalho de elucidação de irregularidades, fazendo cessar as situações viciadas, visto que, muitas vezes, suas determinações emanadas no curso dos procedimentos são atendidas prontamente pelo gestor responsável.

Some-se a isso o fato de que, com muita frequência, são realizados trabalhos interinstitucionais, tendo em vista as parcerias celebradas pelo Ministério Público de Contas com outras instituições de controle, notadamente, Ministério Público estadual e Polícias Civil e Federal, a depender das matérias envolvidas nas investigações. Por meio do trabalho cooperado, que conta com a conjugação de esforços e expertises, à vista do campo de atuação de cada uma das instituições parceiras, são alcançados melhores resultados com o trabalho de fiscalização empreendido, diante do compartilhamento de provas na instrução produzida, a qual conduzirá, de forma mais célere, à adoção de providências visando à correção dos vícios constatados e à reparação de eventuais danos ao erário.

Quando o saneamento das falhas detectadas não é obtido no curso dos procedimentos investigatórios, o Parquet especial representa, então, ao Tribunal de Contas, para desenvolvimento do processo de responsabilização, processo esse em que continuará atuando na condição de custos legis ou custos iures, até decisão definitiva. Algumas vezes, constatando o procurador que o objeto do procedimento investigatório configura, também, ilícito em outras esferas (cível ou criminal), promove o encaminhamento da matéria aos órgãos competentes, para a devida apuração.

Essa brevíssima explanação já evidencia como a atuação investigatória do Ministério Público de Contas pode resultar em ganhos de efetividade na garantia de direitos da sociedade. Sendo protagonista dos trabalhos apuratórios, dentro de um agir célere e estratégico, pautado em critérios de relevância, materialidade e risco, conseguirá dar à sociedade o que ela espera dos órgãos de controle externo, isto é, assegurar que direitos fundamentais como saúde, educação e segurança sejam não apenas a letra fria de normas constitucionais, ou simplesmente uma operação matemática em que se apure percentual mínimo de recursos aplicados em dado núcleo de despesas. O serviço que a sociedade espera dos órgãos de controle externo das finanças públicas reside em tutelar o interesse público, somente resguardado se exigidos, para além da legalidade dos gastos, que sejam também realizados com economicidade e de forma legítima.

Cientes dos ganhos sociais advindos dessa forma de atuação é que os Ministérios Públicos de Contas de todo o Brasil têm buscado instituir seus núcleos de inteligência, que lhes permita trabalhar com sistemas de big data, machine learning e inteligência artificial, voltados ao cruzamento e tratamento de dados, para a obtenção de achados relevantes que irão direcionar o agir estratégico dos seus membros.

Ademais, como mencionado alhures, o controle social também configura importante aliado do MPC em seu trabalho investigatório. Abrindo suas portas para a sociedade, com a disponibilização de canais para o recebimento de denúncias enviadas por qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato, conta o Ministério Público de Contas com valioso repertório de situações suspeitas para o desenvolvimento do seu trabalho apuratório em prol da reparação de eventuais desvios ou emprego irregular de recursos públicos.

O MPC/MG busca, ainda, além das parcerias institucionais celebradas para a cooperação em procedimentos específicos, sua inserção em redes estaduais de controle, a exemplo da Ação Integrada da Rede de Controle e Combate à Corrupção de Minas Gerais – ARCCO-MG e da Rede Mineira de Integridade, cujo trabalho conjunto e colaborativo, respeitado o âmbito de competências de cada órgão partícipe, permite a maximização da efetividade dos resultados alcançados com a atividade fiscalizatória do uso dos recursos coletivos e de combate à corrupção.

Em tempos de crise de toda ordem, como as que assolam nosso país, sobretudo a crise fiscal, agravada pela crise de integridade, como evidenciam os índices alarmantes de corrupção em todos os níveis e esferas de governo, é preciso que as instituições de controle se reinventem para dar conta de lidar com desafios complexos; que explorem ao máximo toda a plêiade de atribuições que a lei lhes reservou para desempenhar, com exímio compromisso, seu papel de tutelar direitos fundamentais da sociedade. Servir ao público, para retomar o início da nossa reflexão, exige o máximo esforço de quem se propôs a fazê-lo, pois que o resultado da sua ação será suportado por toda a coletividade. Por essa razão, o Ministério Público de Contas, sem desincumbir-se do seu relevante papel de custos legis perante o Tribunal de Contas, empreende trabalho de fôlego para fiscalizar e combater o mau uso dos recursos públicos, por meio da instauração de procedimentos investigatórios. Os resultados desse trabalho culminam na correção das falhas ou desvios constatados, de forma célere e, muitas vezes, consensual, evitando-se toda a movimentação da máquina administrativa, com dispêndio desnecessário de recursos financeiros e de pessoal, para a busca da devida correção dos vícios apurados. E mesmo quando ao término do procedimento investigatório não se obtém o saneamento voluntário das falhas detectadas, por omissão ou recusa do responsável, todo o conjunto probatório nele produzido servirá de base para a representação ofertada à Corte de Contas, colaborando dessa forma o MPC, sobremaneira, com o processo a ser desenvolvido nessa outra instância de controle externo.

Como se vê, a função investigatória realizada pelo Ministério Público de Contas tem produzido, atualmente, para além da sua inderrogável e essencial atribuição de custos legis exercida perante a Corte de Contas, melhores resultados para a sociedade, em termos de eficácia, economicidade e efetividade. Qualquer que seja o ângulo do qual se analise, isto é, (I) da celeridade na correção de vícios, evitando-se maior prejuízo aos cofres públicos e a direitos dos cidadãos, assim como a ocorrência da prescrição ou da decadência, que impedem a devida responsabilização e a reparação de danos; (II) da possibilidade de saneamento de irregularidades de forma consensual, minorando dispêndio de tempo e dos parcos recursos da máquina administrativa; (III) da colaboração com as funções do Tribunal de Contas com o oferecimento de representação, e com as demais instituições com as quais desenvolva trabalho em parceria, mediante instrução probatória e elaboração de análises envolvendo seus conhecimentos especializados; facilmente serão percebidos os ganhos de efetividade obtidos com essa atuação ministerial em proveito da finalidade única que deve perseguir: a satisfação do interesse público. E esse comportamento do Parquet especial eleva o grau de sua legitimação, deixando patente sua essencialidade na estrutura orgânica estatal de controle externo. Evidencia que o Ministério Público de Contas vem cumprindo bem o seu papel de servir ao público, dedicando-se a causas que compõem o núcleo central de direitos de toda a coletividade e que implicarão maiores chances de se construir um país melhor em que seja garantida uma vida mais digna a todos.