Especial dia da Saúde – A DEFESA DO DIREITO À SAÚDE NAS CONTAS DE GOVERNO: A ATUAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DE CONTAS DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
Sérgio Paulo de Abreu Martins Teixeira – Procurador-Geral do Ministério Público de Contas do Estado do Rio de Janeiro (MPC/RJ) – 26/08/2017
A Constituição da República qualifica a saúde como direito de todos e dever do Estado, a ser garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doenças e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às atividades voltadas a sua promoção, proteção e recuperação. A relevância pública das ações e serviços de saúde é destacada pela imposição ao poder público do dever de dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, podendo sua execução ser feita diretamente ou através de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado em caráter complementar.
Com vistas a garantir que tal compromisso não seja apenas retórico, o constituinte derivado, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 29, de 13 de setembro de 2000, estabeleceu que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios deveriam aplicar recursos mínimos em ações de saúde, reservando à lei complementar, nos termos do §3º do art. 198, a definição do montante mínimo desses recursos.
A regulamentação do dispositivo constitucional veio em 16 de janeiro de 2012, com a publicação da Lei Complementar nº 141 que, dentre outros aspectos: manteve os percentuais mínimos de 12% e 15% da base de cálculo para aplicação pelos estados e municípios, respectivamente, em ações e serviços públicos de saúde, os quais haviam sido estabelecidos inicialmente no inciso III do art. 77 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; definiu as receitas que devem compor a aludida base de cálculo para aferição do percentual mínimo a ser aplicado em tais ações; bem como enumerou as despesas que podem ser qualificadas como ações e serviços públicos de saúde.
O arcabouço normativo de proteção do direito à saúde, todavia, tem sido posto à prova, quanto a sua efetividade e eficácia, na atual quadra de crise e escassez por que temos passado.
As crises política, econômica, social e financeira são extremamente graves. No âmbito de nosso sofrido Estado do Rio de Janeiro, o endividamento público atingiu patamares insustentáveis – como foi diagnosticado em auditoria governamental realizada pelo TCE-RJ ao fim do ano de 2016 -; a receita pública experimentou expressiva redução; e a situação previdenciária é desalentadora, de verdadeira crise estrutural.
Tudo isso em um cenário de exposição a uma corrupção sistêmica que alcança processos licitatórios, contratações de obras e serviços públicos e a utilização de recursos do erário por agentes públicos e políticos de acordo com seus próprios interesses. Corrupção em sentido amplo que, além de drenar expressiva soma de dinheiro público, tem corroído reputações e, também, a credibilidade de instituições.
A crise, portanto, não é somente financeira e econômica, mas também – e talvez sobretudo – moral.
No âmbito do Estado do Rio de Janeiro esse quadro de crise e escassez tem sido pintado com cores fortes e tem desafiado os órgãos de controle em geral e, em especial, o Ministério Público de Contas, a atender à justa expectativa da sociedade fluminense de uma atuação técnica, eficaz e independente, especialmente no que diz respeito à defesa de direitos ligados umbilicalmente ao postulado da dignidade da pessoa humana, como o são a saúde e a educação.
E uma das formas de atuação mais imediata do Parquet de Contas nesse sentido se dá na análise das contas de governo, com a adoção de entendimentos direcionados à efetiva concretização de tais direitos, procurando assegurar que pelo menos os recursos mínimos exigidos por lei cheguem, de fato, às funções saúde e educação. Essa tem sido a senda trilhada pelo Ministério Público de Contas do Estado do Rio de Janeiro em seus pareceres nas contas de governo estadual e municipais.
O objetivo deste artigo é apresentar, de forma breve, alguns desses posicionamentos relativos especificamente à defesa do direito à saúde.
Para apuração do mínimo legal e constitucional, o Parquet de Contas tem admitido como aplicados em ações e serviços públicos de saúde (ASPS) apenas os valores pagos e as despesas liquidadas e empenhadas devidamente lastreadas na disponibilidade de caixa do respectivo Fundo de Saúde ao final do exercício financeiro. A conclusão decorre da norma contida no art. 24 da Lei Complementar nº 141/12.
Assim, para que sejam considerados no cálculo do limite mínimo a ser aplicado em saúde, os restos pagar devem encontrar correspondência no montante financeiro consolidado no fundo de saúde.
O entendimento encontra relação com uma prática tão comum como perniciosa: o “cancelamento” superveniente de restos a pagar processados sem justificativa legítima. Se o credor cumpriu com sua obrigação, nos termos dos artigos 62 e 63 da Lei Federal nº 4.320/64, tem o direito líquido e certo de receber pela contratação. O possível “calote” do poder público tem resultados desastrosos: aumenta os valores para contratação com a Administração Pública, além de permitir que o prestador do serviço invoque, passados noventa dias, a exceção de contrato não cumprido e cesse o desempenho de atividade essencial à população.
Nesse sentido, a 6ª Edição do Manual dos Demonstrativos Fiscais, aprovado pela Portaria STN nº 553/14, estabelece que: “São considerados processados os Restos a Pagar referentes a empenhos liquidados e, portanto, prontos para o pagamento, ou seja, cujo direito do credor já foi verificado. Os Restos a Pagar Processados não devem ser cancelados, tendo em vista que o fornecedor de bens/serviços cumpriu com a obrigação de fazer e a Administração não poderá deixar de cumprir com a obrigação de pagar. ”
Para o Parquet de Contas, diante do dever constitucional de prestar contas que lhe é imposto, ao não se desincumbir do ônus de justificar o referido “cancelamento” dos restos a pagar processados, o gestor de recursos públicos adota conduta que viola os princípios constitucionais da transparência, da impessoalidade e da moralidade administrativa (art. 37, caput, da CRFB/88). O procedimento, com efeito, por sua gravidade, configura irregularidade a contaminar as contas prestadas.
Outro aspecto que tem sido destacado pelo Ministério Público de Contas do Estado do Rio de Janeiro no exame das prestações de contas – designadamente de governos municipais – para tutela do direito à saúde – no caso, também do direito à educação – é o da necessidade de discriminação da origem das receitas aplicadas nas respectivas ações e serviços públicos e na manutenção e desenvolvimento do ensino (MDE).
O objetivo é garantir que sejam levados em conta para apuração do limite mínimo constitucional apenas os recursos que tenham sua fonte em impostos e transferências de impostos, de modo a atender plenamente ao estabelecido no artigo 212 da Constituição da República, bem como ao que dispõe a norma do artigo 7º da Lei Complementar Federal nº 141/12.
Ademais, a instituição de controles orçamentários e financeiros é imposição da Lei de Responsabilidade Fiscal que, ao dispor sobre a escrituração das contas públicas, determinou que a disponibilidade de caixa constará de registro próprio, de modo que recursos vinculados a órgão, fundo ou despesa obrigatória fiquem identificados e escriturados de forma individualizada.
Art. 50. Além de obedecer às demais normas de contabilidade pública, a escrituração das contas públicas observará as seguintes:
I – a disponibilidade de caixa constará de registro próprio, de modo que os recursos vinculados a órgão, fundo ou despesa obrigatória fiquem identificados e escriturados de forma individualizada;
Para cumprir este mandamento legal, a Administração Pública deve classificar as receitas por fonte de recursos, segundo a destinação legal da respectiva arrecadação. Tais fontes correspondem a determinados grupamentos discriminados por natureza da receita, atendendo a uma determinada regra de destinação legal, e servem para indicar como são financiadas as despesas realizadas pelo ente público. Os recursos públicos, assim, devem ser individualizados de forma a evidenciar sua aplicação segundo a determinação legal.
A medida milita em prol da instituição de controles orçamentários e financeiros que permitam a perfeita aferição das aplicações em MDE e ASPS para atendimento dos normativos constitucionais e legais.
Embora de amplo conhecimento, nunca é demais lembrar: em um Estado Fiscal, aquele que é financiado sobretudo com recursos oriundos de tributos, os gestores públicos e os órgãos de controle estão a “tomar conta” do dinheiro do contribuinte (não é dinheiro do Estado, mas de cada um de nós), o que os torna objeto de controle, órgãos controlados pela sociedade. Em relação a ela possuímos o dever fundamental de prestar contas.
Diante dessa premissa, iniciativas como as que tem sido levadas a efeito pelo Ministério Público de Contas do Estado do Rio de Janeiro nas prestações de contas de governo estadual e municipal constituem pequenas contribuições para atingir um objetivo maior e indissociável da jurisdição de contas e da função de controle externo, qual seja, o de assegurar que cada centavo do dinheiro público chegue, sob a forma de serviços púbicos prestados de forma eficiente e eficaz, ao seu verdadeiro destinatário: o povo do Rio de Janeiro.